terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

“Queremos tirar as crianças portuguesas do sofá”

Mário Silva, presidente da Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil, garante que a escola é um ambiente ideal para educar para a saúde. Há projetos no terreno.

Hábitos alimentares saudáveis e exercício físico são importantes para combater a obesidade infantil, um dos maiores desafios da saúde pública do século XXI. A Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil (APCOI) trabalha nessa área há um ano em três frentes: sensibilização, intervenção social e investigação, programas educativos e formação pedagógica. Mário Silva, presidente da APCOI, sublinha que a escola é um meio privilegiado para abordar o assunto e sensibilizar alunos e pais para a problemática do excesso de peso. "Os responsáveis educativos têm à sua disposição todas as vantagens para promover uma reeducação alimentar e desportiva", refere. 

O trabalho não pode parar e a APCOI tem vários projetos em curso para alertar para a importância de uma alimentação equilibrada, como é o caso de Heróis da Fruta - Lanche Escolar Saudável. É necessário desmistificar hábitos alimentares desequilibrados e estimular a prática desportiva regular. 

A APCOI quer combater o sedentarismo, tirar as crianças do sofá. E avisa que é preciso atenção ao tempo que os mais novos passam em frente à televisão. "A evidência científica não deixa dúvidas de que o marketing e a publicidade a produtos alimentares dirigidos a crianças faz aumentar o seu consumo". 

EDUCARE.PT: Trinta e dois por cento das crianças portuguesas entre os 6 e os 8 anos têm excesso de peso e 14% são obesas. As escolas devem ter motivos de preocupação com estes níveis de obesidade infantil?

Mário Silva: É imprescindível o envolvimento da família e de todos os prestadores de cuidados infantis, nos quais se incluem as escolas, para que se produza uma mudança de hábitos e comportamentos nas crianças. A adoção de hábitos saudáveis é a melhor medida para prevenir e tratar a obesidade infantil.

A uma alimentação equilibrada deve-se associar a prática regular de exercício físico na escola e nos tempos livres. Sabe-se hoje que o sucesso na adesão e permanência em programas de atividade física é maior quando estas são práticas desportivas organizadas (na escola, através de clubes desportivos, etc.) e quando existe um envolvimento ativo dos pais e professores.

E: Quais os instrumentos que os responsáveis educativos têm ao dispor para contrariar a tendência de aumento de obesidade dos alunos? 

MS: O espaço escolar surge como um ambiente ideal para educar para a saúde, porque reúne as condições que permitem dotar as crianças de conhecimentos, atitudes e valores que as ajudem a fazer opções e a tomar decisões adequadas à sua saúde física, social e mental, bem como à saúde dos que as rodeiam, conferindo-lhes assim um papel interventivo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) indica que a promoção da saúde não é da responsabilidade exclusiva dos serviços de saúde, mas sim de todos os setores, nomeadamente o da educação que deve ser responsável pela construção de um bem-estar global. Os responsáveis educativos têm à sua disposição todas as vantagens para promover uma reeducação alimentar e desportiva, nomeadamente o apoio administrativo, a presença dos alunos e um ambiente em que a atenção e a aprendizagem são a regra. 

Em complemento, as famílias e a comunidade podem ser facilmente integradas no contexto escolar. São também vários os estudos que apontam para o facto de ser nos primeiros anos de escolaridade - da pré-escola ao fim do 1.º ciclo - que as atitudes face à alimentação e ao exercício físico parecem mais suscetíveis de serem melhoradas do que em anos posteriores. Por isso mesmo, as escolas detêm uma posição única para influenciar tanto a alimentação como a atividade física das crianças. Para além da importância da educação para a saúde em ambiente escolar, os estabelecimentos de ensino devem assumir-se como "espaços saudáveis", proporcionando para isso uma oferta alimentar nutricionalmente adequada, através dos seus refeitórios e cafetarias.

E: As cantinas das escolas têm ou não em atenção uma alimentação saudável? O que pode ser feito nesta matéria?

MS: O Ministério da Educação produziu normas gerais para as cantinas que contemplam uma lista de alimentos autorizados na confeção de refeições escolares, regras para a elaboração das ementas, indicações relativas à higiene e à segurança alimentar tendo em vista o fornecimento de refeições saudáveis e seguras.

De acordo com estas normas, as refeições a servir na escola que obedecem a princípios dietéticos de variedade e de qualidade, cuja definição é da competência da Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular (DGIDC), devem ser aprovadas pela direção da instituição de ensino, com a antecedência mínima de quinze dias e devem incluir obrigatoriamente sopa, legumes cozidos ou crus a acompanhar pratos de carne ou peixe e água como única bebida permitida. Além disso, existem preocupações relativamente à confecção dos alimentos, por exemplo, as ementas escolares só podem conter fritos apenas uma vez em cada duas semanas. Compete às câmaras municipais, no âmbito dos refeitórios escolares deliberar sobre a sua criação, manutenção e administração. No entanto, todos os docentes, auxiliares e encarregados de educação devem estar atentos e zelar diariamente pelo cumprimento destas normas, uma vez que ensinar às crianças quais são as escolhas mais saudáveis é uma responsabilidade de todos os adultos.

E: Quais os piores perigos? Fast-food, pouco exercício físico, falta de orientação nutricional em casa, hábitos enraizados, os cafés à porta das escolas...

MS: A obesidade é um problema multifatorial. Contudo, são os fatores ambientais, nomeadamente o comportamento alimentar e o exercício físico, que exercem a maior influência na magnitude da expressão clínica da doença. Os desequilibrados padrões de alimentação infantil incluem um baixo consumo de fibras (dada a diminuta ingestão de vegetais e fruta), excesso de açúcar (refrigerantes, bolos, doces), excesso de gorduras saturadas e de sal. A esta alimentação desequilibrada associa-se a reduzida prática de exercício físico, sendo Portugal um dos países com mais elevada prevalência de inatividade física da União Europeia, realidade para a qual contribuem vários fatores, tais como: a carência de espaços apropriados para atividades ao ar livre, o aumento da insegurança que favorecem a permanência em casa e o aparecimento de atividades lúdicas mais sedentárias entre as quais a televisão, os jogos eletrónicos, o computador e a Internet. 

A evidência científica não deixa dúvidas de que o marketing e a publicidade a produtos alimentares dirigidos a crianças faz aumentar o seu consumo. A isto acresce o facto de as crianças não terem a capacidade de discernir entre publicidade e programação televisiva a elas dirigida, nomeadamente a programação infantil e, por isso, em alguns países existe já uma restrição à publicidade dirigida às crianças, seja qual for o seu suporte. Segundo um estudo da DECO, realizado em 2004, a categoria de produtos mais publicitados, durante a programação infantil, é a dos bolos e chocolates, alimentos ricos em açúcar e gordura e portanto pouco interessantes numa alimentação saudável. É, por isso, importante reduzir o tempo que as crianças despendem a ver televisão, recomendando-se menos que duas horas por dia.

E: As crianças do sexo feminino têm mais excesso de peso. Açores e Alentejo são as regiões do país onde se verifica uma maior prevalência de obesidade infantil. Há explicações para estes cenários?

MS: Os cenários referidos foram observados no estudo COSI do Sistema Europeu de Vigilância Nutricional Infantil, apresentados em 2011 na Conferência Internacional sobre Obesidade Infantil, contudo não foram produzidos dados de amostras representativas regionais, pelo que também não foram estudadas as causas para esses cenários.

E: Os rastreios nutricionais gratuitos que têm feito junto da população infantil têm dado resultados?

MS: O rastreio nutricional gratuito que fazemos junto da população infantil tem sido fundamental no diagnóstico e encaminhamento de novos casos para tratamento. Muitas famílias ficam surpreendidas quando detetamos pré-obesidade ou obesidade nas suas crianças, pelo que se denota ainda falta de informação. Por isso, vale sempre a pena desmistificar hábitos alimentares desequilibrados enraizados, estimular a prática desportiva e contribuir assim para que as crianças do presente tenham um futuro mais saudável.

E: O que é que a APCOI tem feito na área da prevenção?

MS: O nosso trabalho de prevenção divide-se em três áreas fundamentais. A primeira é a de sensibilização pública para o problema. Para tal, realizámos no ano passado a primeira Corrida da Criança que reuniu mais de 2000 famílias numa manhã que combinou atividade física e alimentação saudável. Iniciativa que vamos organizar também este ano, dado o seu elevado sucesso e adesão. Além disso, foram distribuídas 2625 peças de fruta em ações e eventos. A segunda área é a de intervenção social e investigação, na qual realizámos, ao longo do ano passado, 954 rastreios nutricionais gratuitos com crianças até aos 14 anos. Finalmente, uma terceira área de programas educativos e formação pedagógica. Nesse âmbito, em 2011, participaram 1627 crianças no jogo pedagógico Sabichões Saudáveis desenvolvido para reforçar os conhecimentos sobre alimentação saudável e atividade física. Além disso, destacamos o recente projeto Heróis da Fruta - Lanche Escolar Saudável que arrancou este ano e abrange 28 094 alunos de 1377 turmas de 546 escolas básicas do 1.º ciclo e jardins de infância de todo país, incluindo as regiões da Madeira e Açores.

E: Quais os obstáculos que encontra nesse trabalho? A falta de informação é o principal entrave?

MS: A obesidade representa um dos maiores desafios da saúde pública do século XXI. Em muitos países da Europa, a sua prevalência triplicou nas últimas duas décadas. O número de afetados continua a aumentar a um ritmo alarmante, particularmente nas crianças. Por mais eficientes que sejam os serviços de saúde que qualquer sociedade possa oferecer aos seus cidadãos, a prevenção da doença e a preservação da saúde dependerão sempre da adoção de estilos de vida saudáveis por parte das pessoas. Por isso mesmo, uma das tarefas das nossas equipas de intervenção no terreno é insistir para que a prevenção se faça também junto das populações em que a doença não está ainda instalada. Ou seja, é importante fazer chegar esta informação a todas as crianças, mesmo àquelas que não se debatem com este problema, porque a melhor forma de evitar ou tratar qualquer problema de saúde é conhecê-lo e saber como evitar as suas causas!

E: Confiante no sucesso do projeto Heróis da Fruta - Lanche Escolar Saudável?

MS: O projeto é o resultado de um trabalho de muitas horas, realizado por uma equipa bastante competente e multidisciplinar. O conceito já tinha sido testado anteriormente num projeto-piloto local com elevada taxa de sucesso, pelo que o objetivo era precisamente multiplicar os resultados a uma escala nacional e é o que temos vindo a fazer. Fornecemos todas as ferramentas pedagógicas aos professores e educadores através de um guia repleto de propostas de atividades e fichas de trabalho e vamos reunir dados atualizados sobre hábitos alimentares e de actividade física das crianças portuguesas até aos 10 anos, de todo o país. É um projecto de continuidade que pretendemos renovar e expandir a cada ano letivo.

E: Um ano de atividade: vale a pena continuar a lutar pela promoção da saúde das crianças?

MS: Completamente. As crianças são o futuro do nosso planeta. Haverá algo mais importante do que fazer todos os esforços para que elas tenham saúde? Por isso mesmo é que criámos o seguinte lema: "APCOI, por um futuro mais saudável".

E: Qual o balanço que faz deste primeiro ano de trabalho?

MS: O balanço é altamente positivo. Vamos continuar a nossa missão de prevenção da obesidade infantil em Portugal, em todas as frentes. Conforme referi, os números de 2011 são muito satisfatórios e dão-nos ânimo para continuar o nosso trabalho sempre com intenção de superar os resultados alcançados.

E: Quais os projetos para 2012? A segunda Corrida da Criança mantém-se no programa?

MS: A segunda Corrida da Criança já tem data e local, realiza-se a 20 de maio de 2012, nos Jardins do Casino Estoril e espera reunir 2500 famílias. Estão previstas outras iniciativas ao longo do ano, sobretudo com o objetivo de tirar as crianças portuguesas do sofá, incentivando-as a praticar mais atividade física e a consumir uma alimentação mais saudável. Contudo, essas iniciativas serão reveladas a seu tempo.

E: A APCOI é uma vasta comunidade de voluntários. Como coordena uma equipa tão vasta, com profissões tão distintas?

MS: A maior dificuldade é conciliar a disponibilidade de horários e a manutenção dos níveis de motivação de uma equipa com tantos elementos que não são remunerados financeiramente pelo seu trabalho. No entanto, há um núcleo central, mais reduzido, que contribui para a tomada de decisões prioritárias e que me auxilia na execução das tarefas de escritório, em particular graças ao trabalho diário de Jorge Padeiro, que é o meu braço direito. Seria ainda impossível fazer este trabalho sem o apoio das marcas e das empresas solidárias que se têm sensibilizado com a nossa causa.